A LUNETA DE CLARKE
Num vídeo disponível no YouTube, gravado em 1964, o escritor de ficção científica e inventor Arthur C. Clarke oferece uma descrição detalhada da cidade futuro – não da cidade do dia de amanhã, diz ele, mas da do “dia de depois de amanhã”. No ano 2000, prevê Clarke, a cidade poderá até nem existir enquanto tal, em resultado de incríveis desenvolvimentos nos satélites de comunicação. Estes tornarão possível o contacto instantâneo entre as pessoas, onde quer que estejam, em qualquer lugar do mundo. Um indivíduo poderá gerir os seus negócios no Haiti ou no Bali a partir de Londres; e um neurocirurgião, sediado em Edimburgo, poderá operar pacientes na Nova Zelândia. Nesse dia, profecia Clarke, as pessoas não vão precisar de se deslocar para trabalhar – as viagens acontecerão apenas por motivo de lazer. Dez anos mais tarde, numa entrevista à ABC, Clarke antecipa que o filho do entrevistador, quando for adulto, terá em casa um computador portátil, com um ecrã de televisão, através do qual poderá satisfazer todas as necessidades de informação para a sua vida quotidiana, desde a obtenção de extratos bancários à aquisição de bilhetes para o teatro.
Evoco a visão de Clarke no contexto da celebração dos 30 anos do ensino de Engenharia Informática e Computação na FEUP por duas razões. Em primeiro lugar, porque o futuro que o escritor e inventor descreve tem vindo, em grande parte, a ser construído também pelos diplomados desta Faculdade. É graças ao trabalho de investigação colaborativa, a nível global, que temos hoje soluções tecnológicas avançadas que concretizam a narrativa especulativa de Clarke, levando-a ainda mais longe. Em segundo lugar, porque estabelece as bases para a construção de uma imagem otimista do trabalho que há ainda a fazer no campo da informática e da computação.
Clarke estava ciente dos receios contemporâneos em relação à televisão – nos anos 60 vista como uma ameaça à sociedade, à leitura, à interação entre os indivíduos, às famílias. Bastará lermos o romance distópico Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, para compreendermos o grau de ceticismo da cultura ocidental em relação ao desenvolvimento tecnológico. Contudo, como defendeu o filósofo austríaco Ivan Illich em Sociedade sem Escolas (1971), o mal não está no instrumento, mas naquilo que com ele fazemos. Clarke escolheu confiar que o ser humano seria capaz de aprender a utilizar os novos sistemas de informação e olhou para o “dia de depois de amanhã”, vendo, lá no fundo do futuro, as consequências positivas desses avanços.
No momento de grande ceticismo que hoje se faz sentir face às possíveis consequências negativas da utilização massiva da Inteligência Artificial, o exemplo de Clarke poderá ser útil. Refiro-me, em particular, à forma como a IA poderá minar o desenvolvimento da inteligência humana, as relações de proximidade entre os indivíduos e a nossa ligação à natureza. Olhemos, pois, pela “luneta” de Clarke; deixemo-nos deslumbrar por esse “futuro absolutamente fantástico” (tomei emprestada a expressão ao escritor); o que vemos?
Posso dizer-vos o que vejo: uma sociedade onde todos têm igual acesso à informação e à educação, e esta prepara os indivíduos para uma utilização criteriosa da IA, preservando o pensamento crítico; onde, numa concretização plena da visão de Clarke, os cuidados de saúde são disponibilizados a todos, mesmo os que vivem nas zonas mais remotas do globo; onde as horas de trabalho são reduzidas, havendo mais tempo para o lazer e a família; onde o tratamento de dados permite prever catástrofes e determinar a melhor forma de as evitar; onde as alterações climáticas foram contrariadas por soluções tecnológicas avançadas; onde o ser humano vive em contacto com a natureza – onde, na verdade, a tecnologia não é inimiga da natureza, mas sua protetora. Lá no fundo da luneta, vejo formar-se uma imagem: uma árvore imponente, constituída por 0s e 1s: a linguagem da natureza descrita em linguagem binária. Em harmonia.
Convido-vos a olhar pela Luneta de Clarke.
Fátima Vieira
Vice-Reitora da Universidade do Porto
Cultura e Museus