“Poderá a divulgação de Ciência ser um negócio rentável? Nunca como agora a comunidade científica sentiu tanta pressão na validação e legitimação do que é produzido. Poderá a solução passar pelos repositórios de Acesso Aberto?”
São questões colocadas pelos docentes do DEI, Carlos Baquero, João Cardoso, Pedro Diniz e Rui Maranhão, e que abrem o artigo de opinião recentemente publicado no Expresso e que abaixo transcrevemos:
“A publicação de artigos científicos em conferências e revistas de referência é uma das atividades mais importantes para a divulgação e avanço da ciência e do conhecimento. Recentemente a FCCN, via B-On (biblioteca do conhecimento online), estabeleceu mais um protocolo no sentido de criar condições mais favoráveis para a comunidade científica nacional publicar artigos científicos em Acesso Aberto. A publicação em Acesso Aberto tem a vantagem de permitir a leitura de artigos sem custos de subscrição.
Enquanto no sistema clássico de publicação, os custos eram normalmente cobertos pelas instituições ao subscreverem revistas científicas para uso dos seus investigadores, normalmente podendo os mesmos optar por Acesso Aberto através de custos adicionais, no sistema único de Acesso Aberto estes custos são transferidos para o momento de publicação, e usualmente cobertos por um projeto de investigação afeto aos autores. Estes protocolos visam reduzir estes custos, usualmente com descontos sobre a taxa de processamento de artigos.
Sem entrarmos na polémica sobre o lucrativo negócio das editoras especializadas em ciência, é fácil observar que houve uma transferência do momento em que as editoras são financiadas. No sistema clássico os autores submetiam os seus trabalhos, estes eram avaliados por outros cientistas, melhorados e, sendo aceites, eram publicados nas revistas, sem nenhuma transação que envolvesse o autor (eram comummente as bibliotecas que assumiam estes custos).
No sistema de Acesso Aberto, que genericamente exige as tais taxas de processamento, o autor tem de garantir financiamento depois do artigo ser aceite para que este seja publicado. Embora em teoria não se esteja a pagar pela aceitação do artigo, e tal só dependa da sua qualidade, os incentivos económicos mudam um pouco o panorama, pois pode passar a haver mais pressão sobre as editoras para maximizar o número de artigos publicados.
Apesar deste risco, as editoras têm interesse em preservar o seu prestígio e o prestígio das revistas que publicam. Ao selecionarem um número reduzido de artigos da máxima qualidade, prestam um importante papel de seleção editorial aos seus leitores, às próprias áreas científicas, e melhoram o potencial impacto de cada artigo. Várias revistas clássicas, suportam ambas as modalidades de publicação, sendo o Acesso Aberto apenas uma opção e podendo as publicações aceites ser publicadas sem custos para o autor.
Resultados publicados em revistas de topo, como a Science e Nature, têm imensa visibilidade quer na comunidade científica quer, por vezes, na sociedade em geral. Contudo, sendo estas publicações muito seletivas, exigem aos autores vários meses de preparação, antes da próprio envio do artigo, e de melhoramento e trabalho adicional significativo ao longo do exigente processo de revisão pelos pares. Numa sociedade de “fast food” nem sempre parece haver tempo para estes morosos processos de “slow science”.
Na última década, junto com o crescimento da modalidade de Acesso Aberto, tem também crescido a oferta de revistas de Acesso Aberto que prometem tempos de revisão pelos pares muito curtos, tornando-se assim muito desejáveis para investigadores júnior desejosos de melhorar os seus perfis académicos. Pegando no provérbio “Depressa e bem, não há quem” podemos observar que há limites para os ganhos de eficiência que se podem obter quando os revisores são usualmente outros cientistas, não remunerados pela editora, com escasso tempo disponível, em particular quando são cientistas de renome.
Nestas editoras, a obtenção de eficiência levam invariavelmente a corpos editoriais com várias centenas de membros, habitualmente pouco conhecidos, em contraste com a usual dezena de nomes reconhecidos pela comunidade e com um papel claro na seleção de artigos em revistas de referência.
Outros mecanismos para assegurar um modelo de negócio lucrativo parecem assentar na criação de inúmeras edições especiais por convite e no convite massivo a vários cientistas para a preparação destas edições; muitas vezes em áreas que não dominam ou nas quais não são reconhecidos. Os cientistas têm mesmo sido aliciados por ofertas e reduções em relação a custos de Acesso Aberto, uma estratégia que garante o envolvimento de muitos e a abrangência necessária para um modelo de negócio lucrativo. Todos estes fatores diminuem e muito a perceção de qualidade dos artigos selecionados.
Esta diminuição da qualidade de publicação tem sido recentemente discutida noutros países europeus, com abordagens algo díspares. Os potenciais impactos destas práticas na qualidade da ciência foram discutidos num artigo da KTH Royal Institute of Technology, Suécia; já na nossa vizinha Espanha tem sido discutida a crescente migração para meios de publicação rápida. Nalguns países, como por exemplo na Suíça e Reino Unido, estes canais de difusão de resultados científicos são simplesmente ignorados ou mesmo desconhecidos. Nota-se mesmo da parte de instituições de referência, uma postura de rejeição em que investigadores com extensiva ou significativa parte das suas publicações nestes canais não são levados a sério.
Talvez não seja alheia a este fenómeno de publicação rápida de resultados pouco amadurecidos, a observação de que cada vez há menos impacto da investigação na transformação da sociedade, tal como documentado num recente artigo da Nature.
A publicação rápida e massificada por via destas editoras tem sido demasiado tentadora para cientistas em início de carreira, para uma comunidade científica sujeita a imensa pressão competitiva e onde a publicação regular é essencial para o desenvolvimento da carreira. Em Portugal, podemos constatar que o crescimento da proporção de publicações em Acesso Aberto, na última década (linha negra), não teria ocorrido se fosse descontado o efeito das publicações em duas grandes editoras de publicação acelerada (linha vermelha mostra como seria a proporção sem essas publicações que designamos por Acesso Aberto Acelerado). O efeito seria ainda maior se fossem descontadas outras revistas de menor dimensão e associadas a práticas que se poderão mesmo classificar de predatórias.
Se por um lado o Acesso Aberto pode ser positivo para uma melhor divulgação dos resultados de investigação, tal não deveria ser à custa da diminuição de qualidade das publicações. Tal como um pouco de fast food pontual não tem grande impacto na nossa saúde, também parece razoável uma certa dose deste tipo de fast science. Nem sempre toda a investigação produz os resultados que os autores gostariam; há competição e por vezes outras equipas publicam primeiro.
Contudo, já não é saudável, tal como com uma dieta primariamente de fast food, que o grosso das publicações de um dado investigador, equipa ou instituição comecem a ser, por norma, deste tipo. Muitos artigos que poderiam alcançar revistas de topo acabam por não realizar todo o seu potencial ao serem direcionados para estes canais de publicação rápida.
Aliás, a existência de repositórios de pré-publicação, como o arXiv e medRxiv, permitem alcançar uma divulgação rápida e aberta sugerindo mesmo que estes canais (e não os de publicação em Acesso Aberto Acelerado) fossem usados para esse mesmo propósito permitindo assim aos autores refinar os seus artigos e elevando mesmo a sua qualidade (em termos de extensão de dados e/ou mais sólida fundamentação das conclusões) pela sua publicação noutros canais com mais demoradas fases de avaliação por pares.
Pior do que o desenvolvimento de um currículo rápido e a metro, a abordagem atualmente vigente é ela própria contraproducente para os autores, já que não permite aos próprios realização do seu máximo potencial e pode, a longo prazo, ter impacto negativo nas suas carreiras. Uma pedra basilar do sistema é a liberdade individual de investigação; os autores são soberanos nas suas escolhas de alvos de publicação. Porém é importante estar atento à existência de revistas com estratégias mais massificadas e potencialmente predatórias. Há 20 anos, era relativamente simples distinguir as boas revistas das revistas com prácticas que se poderão classificar como predatórias, sendo estas últimas muito artesanais e pouco profissionais. Atualmente a fronteira é muito mais ténue, em parte fruto de modelos de negócio extremamente lucrativos e muito bem-sucedidos.
Parece-nos por isso muito importante que a comunidade científica nacional evite o domínio do “fast science”, nomeadamente evitando que as novas gerações de cientistas caiam na tentação do fácil aliciamento destes modelos de negócio que gravitam na ciência.”
Este artigo de opinião foi publicado no Expresso a 21 de fevereiro de 2023 (09:33).